Na minha longínqua infância, havia aquele muro intransponível
no quintal da minha avó, tão assustadoramente alto
que a minha imaginação não se atrevia a saltar para o outro lado.
Do lado de cá havia canteiros com flores de nomes estranhos,
um banco feito de tábuas brancas e com quatro pés de ferro,
em frente a uma gaiola enorme onde pássaros amarelos e azuis
viviam a permanente agitação da procura de uma saída
um pequeno lago redondo onde rodopiavam, sem descanso,
seis peixes vermelhos com reflexos alaranjados e vigiados de perto
por um gato amarelo com patas de pescador e olhos de desejo.
A minha avó ralhava "Garoto", e ele fingia-se de corola no canteiro
ou escapulia-se pelo muro num aflito equilíbrio de circo.
Passei esse ano, a cavalgar por planícies imaginárias, montes e vales,
num cavalo castanho de papelão com crinas e rabo de estopa
que eu pedira ao Menino Jesus e que aparecera magicamente
pela chaminé da cozinha, no último Natal. Era o 'Valente'.
Aparecia, então, a minha avó e eu lá ia ao lado dela,
falar com os pássaros da gaiola que só a ela respondiam
com uma sinfonia de mil trinados, pulando relâmpagos de voos;
dar de comer aos peixes que logo se chegavam à borda do lago
numa agitação de barbatanas e bocas e olhos na superfície da água
e matar a sede às flores com nomes estranhos que pareciam sorrir.
Quando perguntava à minha avó sobre o outro lado do muro,
ela respondia-me não podia imaginar, nem saber,
- Porque era feio espreitar, dizia-me ela -
E eu desiludido, ficava a olhar o muro demasiado alto, tão alto
que nem a imaginação da minha avó era capaz de espreitar.
Lembrava-me, então, daquele cavalo com asas que voava muito alto
que tinha visto numa gravura num livro que o meu avô tinha
e ficava com a certeza de que tinha sido a minha avó
que pedira ao Menino Jesus para me dar aquele cavalo, sem asas
para que eu não pudesse voar por cima do muro e ver o outro lado.
Não era feio espreitar o outro lado da imaginação!