segunda-feira, 14 de março de 2016

A MORTE DA BEZERRA

SEIS ANOS APÓS TER TIRADO a foto que me serve de perfil, entrei para a primeira classe e durante quatro anos seguintes devia aprender a ler, escrever, contar de um a cem e por aí fora até ao diabo, saber a tabuada até à dos nove, somar, subtrair, multiplicar, dividir, números primos, fracções, linha do norte com estações e apeadeiros, rios de norte a sul, onde nasciam e desaguavam, montes, montanhas e montinhos, afluentes pelo menos do Douro e Tejo, da margem direita e da esquerda, localidades onde se tinham dado as batalhas importantes contra os malandros dos castelhanos (eram sempre uns malandros, os castelhanos), as 4 dinastias, os Reis e os cognomes, o Hino Nacional, claro e a marcha da Mocidade, aquela de "somos pequenos lusitos, mas já firmes e leais, amamos e respeitamos, nossos chefes, nossos pais.....eu sei lá.....A QUANTIDADE DE MERDAS que éramos obrigados a saber!

PARA MIM, AS GRANDES MERDAS eram as horas de comer! Consumi tanto a existência materna que me ensinou a ler para me distrair enquanto me encaixava uma colherada ou uma garfada na bocarra aberta a soletrar.
Quando fui para a escola, sabia de cor e salteado um livro engraçado que se chamava 'OS ANIMAIS' e eu achava muita graça aos desenhos e às legendas das quais retenho duas:
Uma manada de paquidermes:
"ANDA LÁ PARA DIANTE, DIZ A MÃE AO ELEFANTE!"
e
Uma manada de patos
"OLHA O MANO FARRUSQUINHO CAIU DENTRO DO LAGUINHO"
Para mim naquela altura, era tudo manadas até porque ouvi, uma vez, um amigo do meu pai referir-se a um grupo de pessoas que fugiam à polícia não sei porquê mas ele parece que sabia.
"Aquilo é tudo uma manada de carneiros!"
PORTANTO, quando fui para a primeira classe, já sabia ler.
E eu avisei! Mas a D. Vitória não acreditou e abriu o livro ao calhas e eu li o texto; depois abriu noutra página e eu li; e quando ela pediu um livro da segunda classe e o abriu numa página quase a meio eu li tudo quase sem soletrar!
A minha mãe, à tarde quando me foi buscar até pediu desculpa à D. Vitória por não a ter avisado de que eu já sabia ler o livro da primeira classe e eu, ao lado dela a crescer uns centímetros....
 
POR ISSO, nesse ano, nos tempos de leitura eu recordo que aprendi outras coisas muito úteis, tais como,, ..

LÁ ESTÁS TU A PENSAR NA MORTE DA BEZERRA
A dona Vitória, velha professora da primária,
passava-me os dedos magros e trémulos, pelo cabelo,
num carinhoso impulso maternal.
As minhas mãos seguravam o queixo
e só os cotovelos apoiados no tampo da carteira,
sustinham a cabeça
enquanto o olhar passava a vidraça da janela da sala
à procura de um horizonte translúcido, para lá do infinito.

A PENSAR NA MORTE DA BEZERRA. EU?
Quem pensava na morte da bezerra era o filho de Absalão,
um hebreu que depois de ter sacrificado todos os bezerros,
só possuía uma bezerrinha que aliás dera de presente ao filho.
O rapaz, ao saber que o pai tencionava sacrificar o animal,
a quem ganhara uma grande estima, quis opor-se,
mas Absalão na cega obediência matou a bezerra na mesma.
O rapaz sentou-se, ao lado do altar, sem comer nem beber
e assim ficou imóvel até morrer três meses depois.


LÁ ESTÁS TU A PENSAR NA MORTE DA BEZERRA..
Ainda hoje, parece-me ouvir a voz da velha senhora.
Sinto-lhe a mão a passar, leve e trémula, na minha cabeça
quando apoio os cotovelos na mesa,
ponho as mãos por debaixo do queixo
e deixo o olhar vaguear pelo horizonte para lá do infinito.
Não, não estou a pensar na morte da bezerra
Nem tão pouco no Absalão ou no seu desgostado filho
Se fosse um equipamento eletrónico qualquer
uma luzinha vermelha no meio mda teste
apenas em 'stand by'! (gosto do termo).
estar, aparentemente desligado por momentos
a pensar que estou a pensar em nada.
Em modo de espera fica tudo tão calmo...