No funeral do tio Amílcar apareceram cinco homens com ar solene, nas cabeças uns bivaques cinzentos com o número quatro em metal amarelo e duas espingardas cruzadas. Cumprimentaram a tia Eulália e foram prefilar-se em volta do caixão numa homenagem. em silêncio Tinham estado com o tio na guerra. Reconheci um, por o ter visto lá em casa algumas vezes e ele sorriu para mim. A noite estava serena quando o cabo Amílcar saiu em missão de observação, com mais dois camaradas. Perto estava uma aldeia em poder dos alemães. Rastejaram na lama, de buraco em buraco de obus, passaram o silenciosamente as barreiras de arame farpado, evitaram as minas e já estavam perto da estrada que levava à tal aldeia, quando tiveram de abrigar-se numa vala. Uma chuva de ‘very lights’ iluminou a noite. Na vala estava uma jovem com uma criança de colo. O cabo Amilcar e os dois soldados quase lhe caíram em cima Soltou um grito de pavor que o silêncio da noite ampliou. Soldados alemães entrincheirados a uns quarenta metros, começaram a metralhar o local. Duas granadas de gás mostarda caíram na vala. Começaram todos a correr, O tio Amílcar com o bébé debaixo do braço enquanto se serviam das máscaras para proteger a criança e a jovem que atingida por um estilhaço numa perna e coxeava gemendo de dor. Deve ter sido a hora mais longa da vida deles Tinham salvo criança e jovem mãe mas o gás secara-lhe os pulmões e descompassara-lhe o coração. Para sempre. A tia Eulália teve um enfarte e ficou em cadeira de rodas. Não falava. Deixou de conhecer as pessoas. Os primos depositaram-na num lar em Alcabideche até ao dia da sua morte que foi hoje. Nunca mais quis ver a casa. E fez bem! A Vivenda Maria Eulália foi morrendo como ela ia morrendo aos poucos naquele lar. Foram oito anos. Meio destelhada, as janelas esventradas, vidros estilhaçados, azulejos verdes e brancos já incapazes de formarem o xadrez original, abrindo feridas que sangram no negrume da fachada. A escadaria de degraus gastos, os anjos de pedra sem cabeça um e sem asas outro, continuam teimosamente ajoelhados no bordo do pequeno lago seco que as silvas invadiram devoraram e treparam aos muretes do jardim até cobrirem a entrada da garagem, Quando aqui vinha, com os meus pais os anjos do lago eram perfeitos, segurando tochas com flores e havia tabuleiros de margaridas, miosótis, lilases, sálvias e troviscos, sinfonia de perfumes a que a tia Eulália dedicava alma e coração. O tio Amílcar assim que me via, alongava o braço, agitava a mão, a voz fraca, "anda cá, meu menino" e eu sentado ao seu lado, no cadeirão do quarto, a ouvir aventuras que não eram as dele mas que ele me contava como se fossem. Mas se lhe pedia que me contasse uma aventura da guerra dele, franzia-me o sobrolho "ora, não tem graça nenhuma…" e lá vinha um ataque de tosse.No portão fechado a cadeado, a placa ‘VENDE-SE, parece eternizar-se. Sinto nó na garganta, "anda cá meu menino". Então, parece que oiço a tosse do tio Amilcar que combatera na primeira guerra mundial e foi herói com medalha e tudo, não por ter matado gente mas por ter salvo uma jovem e o bébé. Regressou com aquela tosse que o deixava em aflições lívidas, os dedos a repuxarem o casaco de pijama e a cara de enforcado que a doença ia deixando sem ar.