terça-feira, 4 de outubro de 2022

O INÍCIO DE TUDO

 





Pelas oito horas da noite do dia 4, algumas dezenas de populares e também MACHADO SANTOS, o comissário naval apostado em fazer vingar a revolução republicana vão-se juntando na Rotunda quando muitos militares despiam a farda e envergavam roupas civis para desaparecerem. Contra todos os ventos de descrença, Machado Santos ficou!
Na madrugada de 4 para 5 de Outubro de 1910, Lisboa não dormiu Os canhões da Rotunda troaram toda a noite, cumprindo as ordens de Machado Santos que aí se acantonara. Nessa altura, sob a sua chefia, uma patrulha de militares e civis submetera o Regimento de Infantaria 16, em Campo d' Ourique, com rija fuzilaria que tirou a vida ao coronel Celestino da Costa, comandante da unidade.
O grupo dirigiu-se em seguida para o Regimento de Artilharia 1, em Campolide, fundamental para os desígnios republicanos, pela grande quantidade de armas pesadas e munições. O auxílio que a patrulha revolucionária pôde prestar, na unidade de Campolide, ao capitão Pala e aos seus homens revelou-se precioso. Também este quartel caiu nas mãos dos republicanos, dele saindo três baterias sob o comando do capitão Sá Cardoso e do capitão Pala, que teriam as missões de atacar o Paço Real das Necessidades e de forçar à rendição da Guarda Municipal, aquartelada no Carmo.
Tais obectivos não foram alcançados por se ter verificado a falta de apoios inicialmente previstos.
Assim, as colunas acabaram por se fundir e, contando novamente com o apoio de Machado Santos, seguiram para a Rotunda do cimo da Avenida. Lá se concentraram por volta das três horas da madrugada e aí resistiram a uma débil tentativa de ataque, desferida pela Guarda Municipal.
O balanço que os revolucionários puderam fazer sobre a realização do plano previsto não podia ser mais decepcionante. É certo que se soube que, em Alcântara, o Quartel dos Marinheiros passara para as mãos de gente republicana, devido à intrepidez de decisão do primeiro-tenente Ladislau Parreira e dos segundos-tenentes Sousa Dias e Carlos da Maia, mas também se divulgou que, não tendo sido possível prender o rei nas Necessidades, o aquartelamento sofria agora os ataques das forças monárquicas no Paço obrigando o Quartel dos Marinheiros a uma estratégia meramente defensiva.
Nas primeiras horas da noite, com a concentração na Rotunda, os rebeldes à monarquia também não poderiam saber dos outros sucessos alcançados. Com efeito, o tenente Mendes Cabeçadas subordinara o cruzador Adamastor e um grupo audaz de sargentos e praças tomara conta do cruzador S. Rafael, transferindo mais tarde o comando para o tenente Tito de Morais.
Na Rotunda, a manhã viria projectar uma luz fria sobre o ânimo descoroçoado das gentes. Constou que as forças monárquicas se estavam a acantonar no Rossio e que a Guarda Municipal se preparava para carregar, sobre o reduto insurrecto. A esperança estava na possibilidade de a marinhagem poder tomar o Terreiro do Paço, colocando o inimigo entre dois fogos. Mas mesmo isso aparecia como projecto vago. Que fazer, então?
O comandante Sá Cardoso reuniu um conselho de oficiais, no qual expôs em palavras cruas a angustiante situação.
A primeira contagem de recursos humanos foi desmoralizadora. Restavam apenas nove sargentos, cerca de duzentos militares, uns quantos inexperientes cadetes da Escola do Exército e um magote de civis, na sua maioria mal armados. Do Directório Republicano, repositório de políticos maioritariamente civis, apenas se divisava na Rotunda a presença solidária do dr. Malva do Vale.
Foi aproveitada a boa vontade dos populares para cavar trincheiras e reforçar barricadas. Efeito galvanizador. Por volta das onze horas da manhã do dia 4, irão ocorrer, em simultâneo, duas iniciativas de consequências verdadeiramente decisivas.
No Tejo, os cruzadores Adamastor e S. Rafael estão em frente ao cais de Alcântara e, cumprindo ordens de Ladislau Parreira, iniciam o bombardeamento do Paço das Necessidades. A metralha provoca estragos no aposento privado do rei e um dos disparos corta, como que simbolicamente, a adriça do pavilhão real, deixando criadagem em completo estado de pavor.
Os próximos de D. Manuel II insistem na sua retirada para Mafra, e se lhe irão juntar as rainhas avó (D. Maria Pia) e mãe (D. Amélia).
Por vontade do monarca, é transmitida à Escola de Torpedos do Vale do Zebro a ordem de afundamento, por torpedeiros, dos navios revoltosos, a qual fica sem efeito, uma vez que o comando da Escola se nega a dar-lhe cumprimento. Pela mesma altura, a Rotunda é sujeita a um ataque sob o comando do capitão Paiva Couceiro, o qual coordenou a acção militar da Bateria de Artilharia a Cavalo de Queluz, do Regimento de Infantaria 2 e da unidade de Lanceiros, da Cavalaria 2. Como que miraculosamente, a Rotunda resiste e neutraliza completamente a acção por volta das quatro horas da tarde, obrigando os inimigos à retirada.
Este baptismo de fogo da Rotunda teve um efeito galvanizador. Pelas oito horas da noite do dia 4, a Rotunda regurgita de gente: são mais populares a chegar e é também o retorno de muitos dos sublevados que haviam despido a farda e que agora novamente a querem envergar. Uma grosseira contagem dá agora conta da existência de quinhentos militares e de mil civis, metade dos quais armados.
Por descrença, descoordenação ou tibieza, as forças monárquicas do Rossio não se movem e entram em desmoralização a cada hora que passa. Machado Santos decide então agravar as condições do campo monárquico, pondo a troar ininterruptamente uma boca-de-fogo na Avenida. Devido a esta flagelação, um prédio arde. Que importa um prédio a arder contra o fogo inextinguível de um Ideal? O estampido do fogo dura toda a noite, conforme regista nas suas Memórias o escritor Raul Brandão.
O Quartel-General da monarquia incumbe Paiva Couceiro de novo ataque à Rotunda, mas este pouco mais adianta para além da colocação de peças de fogo na Praça dos Restauradores e na zona do Torel. Tudo se salda, afinal, por rijos combates de artilharia que, embora inconclusivos para ambos os lados, produzem o efeito de entusiasmar os da Rotunda e de desânimo nos defensores do rei. No raiar da manhã, o fogo republicano é assestado sobre o Quartel do Carmo, provocando no comandante, coronel Malaquias de Lemos, um indisfarçável temor. No Rossio, lavra a mais profunda inquietação entre as chefias monárquicas.
O que mais se teme é que os navios surtos no Tejo - agora ainda mais reforçados pela conquista do D. Carlos, feita pelo tenente Carlos da Maia - enfiem a metralha pelos eixos da Rua do Ouro e da Rua Augusta e façam depois desembarcar no Terreiro do Paço uma força complementar de neutralização.
Fosse por imperativo moral ou por mera cobardia, os comandantes dos Regimentos de Infantaria 5 e de Caçadores 5, respectivamente coronel Cristóvão Ribeiro da Fonseca e tenente-coronel Peixoto, fazem constar que, a confirmar-se tal eventualidade, não mandarão abrir fogo sobre os marinheiros.
Isto daria razão à análise de Teixeira de Sousa, chefe do governo monárquico, reconhecendo que a resistência contra-revolucionária dependia exclusivamente, nesta última fase do confronto, de forças da Guarda Municipal, dispersas e mal coordenadas.
Por esta altura, já o movimento revolucionário era discutido pelos lisboetas, em botequins e raras casas comerciais que se atreviam a abrir, com os taipais meio corridos.
O jornal republicano O Mundo declarara o seu aplauso à causa da Rotunda. Lisboa passou a acrescentar mais um brado ao seu rumor habitual. Por ruas escusas ou avenidas largas, começaram a ouvir-se os gritos, ainda por então sediciosos, de "Viva a República!".
Para que o armistício tivesse viabilidade, era necessário ser também aceite pelo comando republicano. O general Gorjão escreveu uma carta explicativa das intenções do encarregado de Negócios da Alemanha, arranjou-lhe uma escolta militar e aconselhou-o a que procurasse entender-se também com a parte oponente. E eis que o encarregado, sob a protecção de uma escolta que ostentava uma bandeira branca, sobe a cavalo a Avenida, em direcção da Rotunda. Seriam oito horas e quinze minutos da manhã. O povo de Lisboa atribuiu de imediato à bandeira branca o significado simbólico da rendição e a partir de então, surgem manifestações populares de júbilo e a onda da "arraia-miúda", liberta de medos, inunda o teatro das hostilidades.
No Rossio, populares entusiastas desfazem completamente as formações militares e convivem alegremente com as tropas.
Quando o encarregado de Negócios da Alemanha chegou à fala com Machado Santos, já este tinha obrigado a escolta a passar para a parte republicana. Depois de umas palavras rudes travadas entre os dois, é cometido a António Maria da Silva o encargo de redigir os termos do armistício. Ficou escrito que a suspensão de hostilidades se iniciaria às oito horas e quarenta e cinco da manhã do dia 5 e cessaria uma hora depois.
Não havendo já escolta, Machado Santos dispõe-se a acompanhar o diplomata alemão ao Quartel-General. Ao descer a Avenida o comandante da Rotunda é ovacionado por populares e levado ao colo até ao destino e quando chega ao Quartel-General coberto de pó e sem uma dragona, que lhe tinha sido subtraída pelas efusões apoteóticas a que fora sujeito, assim se apresenta perante general Gorjão completamente desalentado, mas ainda encontra força e dignidade para interpelar gravemente Machado Santos, acusando-o de ter violado o armistício. Ao que este, olhando para o relógio, lhe replica que, sendo oito horas e quarenta e quatro minutos, faltava um minuto para o seu início. Depois, notifica-o de que a República havia sido declarada. Antes de se render, o general Gorjão manifesta a sua apreensões pela segurança do rei e recebe de Machado Santos a garantia de que nada de mal lhe acontecerá.
Decorriam estes decisivos lances, já os membros do Directório republicano se preparavam para proclamar a República e formar o governo provisório, presidido por Teófilo Braga, na Câmara Municipal de Lisboa.
Eram cerca de nove horas da manhã do dia 5, quando Eusébio Leão, Inocêncio Camacho e José Relvas, seguidos por dezenas de republicanos, se dirigem da varanda do município e ao povo da capital, apinhado no largo fronteiro, leem a declaração da abolição da monarquia, o manifesto de proclamação da república e os nomes previstos para o governo provisório.
Cessava o tempo dos militares e iniciava-se o tempo dos políticos.
A República estava feita? Estava. Mas hoje sabemos, talvez mais seguramente do que nunca, que ela, na dimensão mais exigente e essencial, está sempre por fazer e que a sua perenidade reside precisamente nisto.
(fonte: jornal Público de 4 de Outubro de 2020)
Viva a República! Viva a Democracia!