terça-feira, 1 de novembro de 2022

QUANDO A TERRA TREMEU, TREMEU E TREMEU...

 O meu nome era Ismael Ramires, sapateiro com uma loja na rua dos Mercadores, quando se descia para a Ribeira das Naus, mais ou menos a meio caminho. Vivia por cima da loja, com a minha esposa Beatriz, mãe das minhas filhas amadas Isabel e Mafalda e do meu filho Afonso, que partira havia seis meses na nau Glória, rumo a terras de Vera Cruz. Enviara carta, datada de há duas semanas, que estava de boa saúde e partiria para o Sertão em caravana em demanda de ouro que, segundo se dizia, era de abundância por aquelas paragens. Éramos felizes e estávamos num bom momento das nossas vidas. Em breve seria o casamento de Isabel. com Rodrigo que servia na Guarda Real, tendo conhecido Isabel que era, por sua vez, aia da princesa Maria. Tinha dois aprendizes na arte que também faziam as entregas dos arranjos. Uma vida próspera graças às encomendas de sapatos e botas para a Corte de El Rei D. José.

A terra começou a tremer pelas primeira horas da manhã quando a maior parte da população estava nas igrejas e cemitérios já que era dia de Todos os Santos e pela Santa Madre Igreja e pela Fé, dia de homenagear os que haviam partido.
Primeiro foi um ronco que fez estremecer os nossos corações, brotando debaixo de nós, debaixo do chão, de todo o chão, de todo o lado. Depois, tudo começou a abanar; as casas começaram a desabar, a desfazer-se, transformando-se em montes de pedras e de poeira, de madeiros quebrados, os moradores a correr nas ruas em pânico enquanto outros ficaram logo ali, nos escombros. O chão abria-se em fendas até ao inferno e as calçadas enrolavam-se como se de simples tapetes se tratasse. Para os lados da Sé rebentou incêndio que logo se propagou. com mais casas a arder como archotes, pela encosta até ao castelo, pelo caminho ardiam árvores e os animais atropelavam-se numa fuga descontrolada com as pessoas. Os céus fecharam-se num breu aterrador e por baixo dos nosso pés, o chão depois de uns momentos de quietude voltou a tremer e a provocar mais ruínas, mais incêndios. Mais pessoas e animais que desapareciam nas brechas abertas.
O incontido terror levou uma multidão para o Terreiro do Paço, porque se tratava de local arejado e amplo e havia soldados da Guarda Real que tentavam por alguma ordem e organizar algum tipo de socorro às vítimas. Pequenos grupos de homens e mulheres tentavam desesperadamente apagar focos de incêndio com baldes, panelas e outros utensílios que puderam encontrar enquanto muitos outros andavam a correr de um lado para o outro sem préstimo, apenas movidos pelo terror. Os incêndios por toda a cidade não pararam de aumentar com milhares de velas colocadas para iluminar santos e altares.
Foi então que um grande clamor ecoou no terreiro e logo centenas de pessoas se atropelaram numa corrida para as ruas que sobem para o castelo e para a colina do Carmo, por cima das próprias ruínas e dos desgraçados que caíam no pânico da fuga. enquanto outros num pavor extremo encontraram a morte ali junto ao rio.
Uma onda enorme tapando a visão do céu, vinda do lado da rio, trazendo barcos grandes e pequenos, pedras, restos de árvores e destroços sem nome, tudo arrasou, Mais alta que as casas, tudo abafou no fragor da pancada. A onda veio fazer ainda mais mortes e semeou ainda mais terror e depois de uns momentos, outra se seguiu; o rio saltou das margens depois de quase ter desaparecido e fez das ruas um mar de destroços.
Beatriz, a minha mulher desapareceu, o mesmo sucedeu à nossa Mafalda, Um dos meus ajudantes seria encontrado semanas mais tarde nos escombros da loja; do outro, nada se soube, mais. A minha filha Isabel sobreviveu uma vez que se encontrava com a família real em Caneças mas o noivo morreu quando a empena de um prédio na rua dos douradores ruiu no exacto momento em que ele se encontrava a tentar salvar um homem com uma criança ao seu colo.
Quanto a mim, dirigia-me para a Sé à missa das nove quando tudo começou. Tentei voltar para trás, já com o pânico instalado, mas fui atropelado por uma carruagem cujos cavalos se espantaram e o cocheiro caiu do seu lugar e ficou ferido, no meio da rua. O rodado traseiro passou-me sobre o peito e quebrou-me o esqueleto deixando-me sem respirar. Quis gritar, fazer um gesto qualquer mas ninguém ligou e a voz não me saiu da garganta. A poucos metros de mim, o cocheiro com a cabeça numa pasta de sangue tentava, em vão, aguentar-se de pé. Depois chegou a onda com os destroços acumulados. Chegou ás portas da Sé tapou-me para sempre a luz.
NOTA FINAL. Uma ficção na trágica manhã do primeiro dia de Novembro de 1755. Ismael Ramires nunca existiu mas criei a personagem para mais facilmente retratar os momentos de terror. Mais de 1/3 da população de Lisboa morreu ou desapareceu e um número incontável de feridos nem sequer tiveram lugar para ser assistidos pretende imaginar o relato de uma possível vítima de um dos terramotos seguido de maremoto dos mais violentos e mortíferos de toda a história...
"Enterrar os mortos e cuidar dos vivos!", a frase do então primeiro ministro do rei D. José I, Sebastião José de Carvalho e Melo, mais tarde Marquês de Pombal pelas acções valorosas que levaram à reconstrução da cidade com o traçado que ainda hoje a Baixa tem.