sexta-feira, 4 de agosto de 2017

AL KASER, EL KIBIR. A VÉSPERA DA BATALHA

TRISTÃO VAZ ESTÁ ESTA NOITE, que antecede a fatídica batalha, deitado de costas no murete de palanque que ele e outros camaradas estiveram a erguer, durante toda a manhã, debaixo de um Sol abrasador e vento quente que ainda sopra dos lados da cordilheira do Rif, uma planície conhecida por campos de Shuaken, a não mais de três léguas de Alcácer Quibir, abandonada pela população ainda antes da chegada da vanguarda do exército português. Olha as estrelas brilhantes e a lua amarela e oval e tudo lhe parece tão diferente do sitio de onde veio. Ele que sempre vira naquela largueza infinita dos céus do Alentejo, a largura dos seus sonhos, nessa noite os seus olhos parecem-lhe baços, sujos, talvez por se sentir completamente esgotado, talvez porque o sonho não tenha a intensidade de quando partiu e em seu lugar se tenha colocado um terrível pesadelo dos dias vividos e que lhe antecipam a noite seguinte quando aquelas mesmas estrelas e aquela mesma lua voltarem a iluminar aquele chão de deserto, um campo cheio de corpos de soldados e de animais, dispersos pelo imenso areal, coberto de sangue, onde os gritos dos feridos de chagas abertas e os gemidos dos moribundos se confundem e o nauseabundo cheiro dos mortos com o acre da pólvora, paire no ar. É um arrepio que lhe enregela o corpo e lhe despedaça o ânimo. Ainda se ali estivessem os seus dois irmãos. Mas, Diogo é porta-estandarte num terço de espingardeiros sob o comando de D. João da Silveira e encontra-se para sul, a uma boa légua dali e dele nada sabe há mais de dois dias, desde que o corpo de batedores se tinha partido em vários grupos dispersos pelas múltiplas sortidas dos árabes de Mulei Moluco, a que os soldados portugueses já chamavam de diabos brancos pois surgiam do nada e para o nada se evaporavam depois de infligirem algumas baixas a uma tropa esgotada pelo calor, pela fome, pela sede e pela marcha forçada que já contava dez dias e dez noites. De Nicolau apenas sabia que tinha sido evacuado, ferido num recontro mal sucedido pois apanhados, em campo aberto, pelo fogo cruzado de artilheiros árabes dissimulados em dois promontórios de Asilah. Manoel Brás, amigo comum que com eles partira de Évora, disse que o tinha vista numa padiola, coberto de sangue e sem dar acordo, apesar de vivo. Tristão não quer adormecer. São os pesadelos que tem que não o deixam fechar os olhos para não ver sua mãe numa imagem de dor, para nõ vr a sua linda Violante, a quem prometera voltar, num choro junto à sua própria campa, numa noite negra de nuvens de tempestade. Da sua garganta sai um grito estrangulado. “Meu Deus, não me tires as forças que amanhã me perderei!”
A SEU LADO, AFONSO DE MASCARENHAS, moço de boa aparência e fino trato que com ele embarcara em Lisboa a bordo da nau Conceição. Está na trincheira, meio de cócoras, com uma pequena vara na mão a agitar a fogueira à sua frente e assim está há já um bom bocado. Tão moço quanto Tristão, de existência bem diversa. Seu pai D. Álvaro de Mascarenhas morrera, tinha ele cinco anos, durante uns confrontos com holandeses, em terras de Vera Cruz. A mãe, D. Beatriz, enlouquecida pelo desgosto retirara-se para o convento de Xabregas onde veio a falecer ao cabo de uma agonia, em profunda tristeza. O património confiado ao tutor até a maioridade dos filhos. O irmão Samuel, mais velho do que ele seis anos, embarcou para o Brasil, aos dezassete anos, já alferes mor, também ele viria a morrer nessa terra longínqua de umas febres terríveis que mataram muitos dos nossos. A sua irmã Leonor viria a casar-se com o tutor, vinte anos mais velho que ela que entretanto tomara conta da herança de família; mas Lúcio Pratas era um homem metido com a bebida, jogo e mulheres. Leonor viu o casamento um inferno e toda a herança, aos poucos, esvair-se. Lúcio Pratas acabou assassinado em circunstâncias misteriosas e Leonor sem nada de seu, acabou como sua mãe no convento de Xabregas que a recolheu, vindo a morrer de peste, durante a terrível epidemia que graçou por Lisboa. Afonso ouviu o grito sufocado de Tristão como uma prece e voltou-se.“Ah companheiro, assim estou eu que de minha existência só desgostos guardo, por isso motivos me sobejam para desejar que sabre mouro me leve amanhã bem cedo, deste mundo. Mas tu, de juventude feliz e sonhadora e gente que te ama e te aguarda, desesperas assim tanto na vez de buscares na esperança, a força para te salvares.“ Tristão ergue-se de lado, apoiando-se no cotovelo, talvez surpreendido com a fala do amigo, por ter pensado que não fora ouvido. “Com sonhos eu vim e de sonhos arrastei meus irmãos para esta desesperança em que me encontro, razão tão pequena seria a minha que depressa me ficou esmagada no coração.” Afonso pôs-se de pé, apoiado numa das estacas aguçadas destinadas à defesa do palanque. “Não desesperes, pois razões para tal, não tens.” Tristão também se levantou e avançando para aquele moço da sua idade mas com uma vida tão cheia de tristeza, abraçou-o fortemente. Conforto buscava nele que conforto também lhe queria dar naquele momento de incerteza. “Que posso eu dizer-te, amigo, que consolo te traga senão que contigo reparta a desventura dos teus dias. Mas se Deus assim dispôs, razão Lhe assiste. De Sua justiça não duvides que se Ele vivo te tem algo no futuro de bom te dará."
Os dois abraçados e Tristão viu um relâmpago no olhar do amigo quando este apenas lhe respondeu. “Pode ser que estejas certo, amigo... e desejar não quero contrariar a tua crença. Que no vigor deves acalentá-la e não esmorecê-la com agonias, como há pouco. Mas, a mim não censures que da fé já não possa saber mais que uma triste sombra.” Sentaram-se, lado a lado, na beira da trincheira, as pernas a balançar, olhando as estrelas sempre brilhantes e a lua que entretanto desandara para o lado direito e parecia um pouco mais pequena e pálida. Foi então que Afonso comentou não esperando resposta alguma pois pergunta não era. “Como será, daqui a umas horas, quando o dia nascer?” Tristão disse, apenas, sem olhar para ele. “Quem pode sabe... “. Afonso remexeu-se na sua própria dúvida. “Saberá Deus?”
FOI NA MANHÃ DE 5 DE AGOSTO DE 1578 que se deu o desastre de Alcácer Quibir; para assinalar data de tão grande importância que inclusive foi causa próxima da perda de independência e de domínio espanhol durante 60 anos, apresento-vos um excerto de uma minha iniciativa épica (quase livro) intitulada AL-KASER EL-KIBIR que ando a escrevinhar há cerca de dois anos, com períodos de grande azáfama e outros de 'nem por isso' mas que me tem dado imenso gozo e conhecimento histórico pela obrigatória consulta de fontes e livros de romancistas e historiadores e também pelo exercício de imaginação que a construção de personagens que fazem uma história paralela da lenda em que se tornou a verdadeira, sempre traz: