sexta-feira, 1 de julho de 2022

A FEIRA POPULAR

 

A Feira Popular foi inaugurada em 10 de Junho de 1943 em Palhavã, nos terrenos onde hoje estão as instalações da Fundação Calouste Gulbenkian incluídos os magníficos jardins. O objectivo foi o de financiar as férias de crianças carenciadas através da acção social da Fundação "O Século". 

Claro que só me tornei um amante folião da feira, no ano seguinte ou mesmo dois anos mais tarde. ou seja pelos cinco anos. Se fui antes não recordo nada!

Mas, depois chegam as recordações. Quando chegava a Primavera e os dias grandes Chegava a Feira! E aí estava eu tomado por aquela ansiedade até que uma tarde de Maio, o meu pai chegava do trabalho e perguntava à minha mãe:

“Olga, hoje vamos à Feira?”

E pegava em mim:

“Vamos os três andar no carrossel…”

Ena pai que grande notícia. Eu acho que não dizia nada, mas ria e pulava. Era eu a dizer que sim de contentamento. Por vezes já nem jantávamos em casa. Apanhávamos o autocarro cuja paragem ficava em frente à porta de casa que nos deixava a uns duzentos metros mais ou menos. Depois era a pé! Durante o caminho, coitados dos meus pais, tinham de aturar a minha excitação:

“Este rapaz parece uma grafonola! Esteve todo o dia quase sem dizer nada…”

sentenciava a minha mãe perante o sorriso condescendente do meu pai. Sentados os três no banco do primeiro andar do autocarro, o mundo era meu! O avistar dos muros que delimitavam o recinto que mais pareciam muralhas de um castelo, com ameias e tudo, davam em mim aquele ânimo para estugar o passo e passava a ser eu a rebocar os meus pais.

“Vamos ou não?”

E a minha mãe rebocada em cima dos saltos altos no passeio irregular:

“Ó filho ainda me fazes cair, bolas!”

O meu pai travava-me discretamente com uma pressão na mão e sorria. Compradas as entradas num quiosque junto à porta principal, ultrapassado o porteiro. Uff! Entrámos por fim! 

“Ó pai compras os bilhetes para aquele homem os rasgar logo a seguir?”

Não me lembro da resposta se é que houve alguma.

 Aquilo era uma Babilónia!  Luzes, muitas luzes de todas as cores penduradas nuns fios por todo o lado e música muita música, que brotava dumas campânulas no cimo de uns postes, por todo o lado, uma fila de barracas com tudo e mais alguma coisa, bugigangas, brinquedos, utensílios diversos, um mundo de coisas para vender ali logo na primeira rua que ia desembocar: Ohhhhhhhhhhhhh! Maravilha das maravilhas à praça dos carrosséis e dos carrinhos de choque. Mais uma vez pai e mãe rebocados! Normalmente, condescendiam com uma primeira volta no “oito” o meu preferido por ser um carrossel maior, com volta por baixo e por cima e bastante veloz. Se estávamos todos em sintonia na disposição, a minha mãe ia na barquinha de preferência junto a uma girafa e o meu pai de pé ao lado do bicho para me segurar sob o olhar atento da mãe controladora que nunca deixava de sentenciar:

“Alfredo segura bem esse menino!”

O meu pai encolhia os ombros e sorria para mim como quem diz: mulheres… hoje eu entendo! Por vezes num assomo de boa vontade e ainda antes do jantar, uma voltinha nos carrinhos de choque. Tinha de ser àquela hora pois ainda andava pouca gente. Mais tarde, às horas de ponta, a violência aumentava e a pista tornava perigosa a viagem.

Tudo era tão maravilhosamente divertido.

 Lembro-me que num ano apareceu o supra sumo das maravilhas! O “Water Shoot”!!! O “Water Shoot” era uma espécie de mini montanha russa, um carro que levava quatro pessoas e que andava em cima de umas calhas que tinham umas quantas, duas ou três subidas e claro outras tantas descidas para voltar a ganhar balanço suficiente para trepar a seguinte, até que a última descida, ganhava ainda mais velocidade, antes de terminar, e como tudo isto ocorria por cima de um lago artificial, no fim a própria água servia de travagem a esta louca correria pois as calhas mergulhavam discretamente antes da paragem total. A água levantava então à proa e dos lados do carro com o embate e molhava passageiros que surpresos gritavam e esbracejavam alguns bem divertidos, outros talvez nem tanto. Mas, também não havia maneira de evitar uns quantos salpicos bem grossos. Uma viagem no “Water Shoot” era bem mais cara que noutro divertimento, suponho eu, pois tinha de rebocar os meus pais com outra convicção… mas não seria preciso tanto, em noite de boas vontades!

Uma vez, o meu pai atrasou-se lá no armazém onde fazia uma contabilidade, fora de horas, e recebia mais algum, mas não quis estragar a ida já prometida de véspera, telefonou à minha mãe a combinar, ela foi comigo no autocarro do costume e quando chegámos os dois ainda esperámos uma eternidade, a mim pareceu, pelo meu pai que, finalmente, apareceu do outro lado já de bilhetes na mão, um sorriso de orelha a orelha, e um embrulho enorme de papel pardo em forma de triângulo, debaixo do braço.

Beijinhos na mãe, beijo em mim e a minha mãe logo:

“O que é isso?”

O meu pai sorridente:

“Olha, deram-me um bacalhau, lá no armazém!”

A minha mãe em tom de censura:

“Então e agora? Vais andar de bacalhau debaixo do braço aqui na feira?” 

O meu pai contemporizador:

“Ó filha, não faz mal nenhum. Passamos a ser quatro e este tem vantagem. Também não paga bilhete!”

A minha mãe acabou com um sorriso menos amarelo num murmúrio…

“Tens cada uma!”

Era assim o meu pai.

 

O “Water Shoot” lá estava à nossa espera. A fila já era grande mas um pouco de paciência para parecer menos eternidade. Sentámo-nos os três no banco da frente e o bacalhau à frente, entalado entre as pernas do meu pai. Não sei se no banco de trás ia alguém mas, para o caso, não faz diferença. Começamos a deslizar nos carris, devagarinho e aí está a primeira subida, ligeira, e no alto até parece que tudo pára antes da vertigem da descida. 

“Esta ainda não é má…”

Dizia a a minha mãe que sempre temerosa não gostava sobretudo da última. Uma ligeira volta para a esquerda e eis a segunda subida mais pronunciada com, de novo, aquela sensação de que lá no alto o carro podia voltar pelo mesmo caminho. Mas logo se inclinava para uma descida mais veloz ainda do que a primeira…

Ups!!! Estômago a subir pelo peito acima e nós a descer por ali abaixo rumo á curva antes do charco. Cachapuz, pás, blaz, enorme onda para dentro do carro talvez por ir mais pesado à frente e ficámos mais, mas mesmo muito mais, salpicados que o habitual. Ouve-se então a exclamação da minha mãe, sublinhada com um ataque de riso:

“Ó Alfredo que molhaste o bacalhau todo!!!”

E o meu pai, bacalhau entra as pernas com as calças e o embrulho encharcados.

“Olha deixa lá! Já está demolhado…”

Era assim o meu pai!

O regresso a casa era sempre motivo para uma pedinchice muitas vezes satisfeita mas algumas negas que “por hoje, já chega!” e eu lá me convencia!  Mas o sono tinha sempre carrosseís, carrinhos de choque e “water shoots” que duravam até de manhã!