A minha prima Maria do Rosário era assim. Um pãozinho sem sal. Miudinha de osso, muito ‘tabuita’ de engomar, magrinha de pernas e branquinha de cores. Sempre achei que aquela franjinha, alourada e rala, a escorregar-lhe para a testa não ajudava nada. E depois a miopia ainda castigava mais o conjunto com aquelas lentes, tipo fundo de garrafa de espumante, a tornarem os olhitos piscos e sem expressão. Tinha uns dentes bonitos, certinhos e brancos, mas era raro mostrá-los e o sorriso um esgar indecifrável, nervoso e tímido.
Às vezes excedia-se e soltava uma gargalhadinha frenética mas logo se recompunha assim que sentia o rubor na face. A esmerada educação da tia Lili teria sido um sucesso se a Rosarinho tivesse ido para freira mas como não foi, tornou-a um ser cheio de ‘não faças isso que parece mal’, ‘não digas aquilo que não é coisa de menina educada’, ‘não olhes prós rapazes que pareces uma descarada’, ‘olha-me essa maneira de estar sentada’, ‘ai credo, filha, que maneira de falar’ e sei lá eu que mais terá sido proibido e censurado à pobre. A Rosarinho viveu uma adolescência sempre apertada pela vigilância da tia Lili e pelas tossidelas reprovadoras do tio Chico.
O governo acaba de produzir uma lei, a primeira do género no mundo ocidental, que determina a quantidade de sal por cem gramas de produto. Qualquer coisa como um vírgula quatro gramas de sal é o máximo que passa a ser permitido.
Muito bem. Nem quero saber se o limite de um vírgula quatro gramas de sal por cem gramas de pão é suficiente, está bem ou é demasiado. O que importa é a preocupação com o sal no pão. E, como todos sabemos à saciedade que um dos nossos atributos é o de não ligarmos nada às leis que os nossos governos produzem, o governo tratou de quantificar a devida coima para incumpridores: multa até cinco mil euros. Existe descriminação positiva, como agora se diz, para ‘nomes protegidos’ como, por exemplo, a broa de Avintes e o pão de Favaios.
Não me perguntem porquê, porque não sei, mas aceito que a broa de Avintes seja uma grande broa a precisar de uma pitada de sal a mais para não ficar como a minha prima Rosarinho. Digo eu.
Quem articulou lei tão prestimosa para a saúde cardiovascular do consumidor não esteve com meias medidas e tratou de impor outra norma.
Passa a ser obrigatória para todos os alimentos pré-embalados a inclusão de rótulos com a quantidade relativa e absoluta de sal por percentagem de produto e por porção ou dose. Assim, o consumidor terá oportunidade de saber que quantidade de sal está a ingerir quando comer determinado produto. O que é estranho é que o ministério vem dizer que tal medida é ‘impraticável’. Então em que ficamos? Temos uma lei que só é exequível em parte?
Como não seria compreensível que um governo, este ou qualquer outro, restringisse ao pão, as medidas draconianas sobre o teor de sal, a lei adianta que ‘no prazo de seis meses seria apresentado um programa destinado à mesma medida em outros alimentos. Ora já passou o dobro do tempo e nada! Fica a aguardar-se que os croquetes, os bolos de bacalhau, os rissóis, os pastéis de massa tenra, os panadinhos, as sopas, etc., etc., etc., também sejam contemplados por pelas preocupações do governo. A ASAE vai voltar ao terreno com o paladar afinado. Os consumidores agradecerão esta cruzada pela sua saúde.
Já agora, a minha prima Rosarinho via-a, há uns anos, mas só a reconheci porque foi ela que me chamou quando saía de uma boca de estação do metro. Era Julho e estava com um bronzeado dourado que me espantou. Cabelo longo pelos ombros com madeixas de fogo.
Um top branco minúsculo não chegava para tapar o peito (como crescera!) e uma saia de ganga ficava acima dos joelhos, um bom palmo (que pernas!). Calçava umas sandálias de tiras coloridas de saltos bem altos. Quando tirou os óculos de sol deparei-me com dois olhos cinzentos esverdeados maravilhosos. Ela riu-se, talvez por notar a minha cara de espanto. Uma gargalhada exuberante que a minha tia Lili teria, de imediato, qualificado de descarada e ao meu tio Chico, uma tossidela de reprovação. Fiquei perplexo.
Conversámos durante uns quinze minutos atropelando as palavras e rindo de tudo. Como alio curiosidade a uma certa desfaçatez não resisti a perguntar-lhe que era feito da Rosarinho de que eu me lembrava.
‘Ai querido, resolvi dar uma grande volta na minha vida… cansei-me e pronto, enchi as mamas, operei a miopia, faço solário e ginásio e praia...’
Quando além disso perguntei o que fazia mais, respondeu-me a rir.
‘Não, não tenho ninguém. Assim fixo. Percebes? Agora gosto de mim… viajo muito, tenho um Alfa e um andar perto do Califa.’
Tentei perceber o que aquilo queria dizer de não ter ninguém fixo, etc. etc. etc.
‘Ainda bem. Estás óptima!’, respondi sem conseguir tirar os olhos do decote, dos olhos, dos lábios, das pernas dela.
‘Eu, também. Olha querido, desculpa, mas tenho deir. Estou mesmo atrasada. Voltaremos a ver-nos por aí, certamente.’, disse-me já a despedir-se.
Trocámos dois beijos à despedida.
Olhei várias vezes para trás e a minha prima acenou-me e mandou-me um beijo na palma da mão, antes de desaparecer por detrás de um quiosque de venda de jornais e revistas. Quando me deitei, nessa noite, a imagem da Rosarinho regressou.
Quem havia de dizer… a Rosarinho estava um ‘pão’!