terça-feira, 9 de março de 2021

ACABOU JOÃO! VOU-ME EMBORA.

Ouviu a porta bater, permaneceu imóvel, sentado à mesa, um silêncio de olhar parado na parede do fundo, a mão esquerda a segurar um pedaço de papel da despedida, a outra a arrepanhar a toalha amarela com barras azuis. Acabaria com raízes naquele lugar, tronco seco, pés de raízes, num inverno permanente.

(Acabou, João. Vou-me embora!)
A voz dela era calma e suave. Ali, de pé, na ombreira da porta, com o vestido azul curto de alças que ele lhe oferecera. Há quantos anos? Quando chegou, apanhou-a de mala de viagem. Viagem sem volta. Ouviu-a como se estivesse debaixo de água, na turbulência engasgada de censuras, desgostos, traições, queixas. Um amor que se tinha apagado como se apaga uma ilusão.
(Acabou, João. Vou-me embora!)
O filho que ela teve no ventre, durante três meses e que perdeu quando caiu pelas escadas no dia dos seus trinta anos. Um lanço inteiro de degraus até chegar ao patamar com uma clavícula esmagada e uma poça de sangue a manchar-lhe as coxas, o vestido e o chão à sua volta. Ninguém soube que ele a tinha empurrado. Uma violência com nome de crime como noutras noites que lhe bateu deixando-a com nódoas negras no corpo e na alma.
(Acabou, João. Vou-me embora!)
Sem razão. Sem nada. Namorado já era assim. Tão depressa gentil e amoroso como num repente se transformava num vendaval soltando todos os demónios que tinha dentro de si. Ela calava mágoas e revoltas em choros solitários. Ele parecia redobrar a violência.
(Acabou, João. Vou-me embora!)
Finalmente achou a coragem nas dores de outras mulheres que como ela tinham tido a coragem de se libertar. A sua melhor amiga, que ficara solteira e vivia só foi o farol que lhe deu caminho. E, agora que lhe retribuía na carne os espinhos da vida que ele lhe dera, sentia um estranho prazer. Tinham passado anos demais. Anos a mais.
(Acabou, João. Vou-me embora!)
Terminou sem uma lágrima. Sem comoção. Ainda pareceu esperar um pouco, tentando adivinhar uma reacção. Mas ele permaneceu debaixo de água onde os ecos das palavras lhe chegavam distorcidos. Sempre se recusara a admitir tal desfecho. E, agora, era ele que ficava só. A sua mulher desprezava-o. Ela teve um sorriso amargo. Sabia que ele era demasiado arrogante para um arrependimento. Um pedido de desculpa que fosse. Ela tinha dito praticamente tudo. Deixava-lhe o papel como quem deixa um lenço branco á despedida.
(Acabou, João. Vou-me embora!)
Aquele tique meio nervoso com o ombro a evitar o escorregar da alça do vestido. Pegou na carteira vermelha que ele achava horrível. Hesitou ainda. Um beijo? Que beijo? Deu meia volta. Ele ficou parado no tempo, a arrepanhar as barras azuis da toalha amarela, o papel com frases engasgadas de censuras, desgostos, traições, queixas, um amor que se apagara como se apaga uma ilusão.
(Acabou, João. Vou-me embora!)
Ficou a ouvir os passos dela a afastarem-se pelo corredor até que a porta se abriu e segundos depois voltou a fechar-se com um estranho silêncio. Ela desceu a escada arrastando o peso da mala e o peso dos anos mas, de repente, a mala pareceu-lhe leve, tão leve que parecia voar atrás de si, passeio fora, rua abaixo. Um último olhar. A luz da sala ainda acesa e a janela meio aberta. E voava já rumo a um dia novo. Rua abaixo...
(Acabou, João. Fui-me embora!)