domingo, 24 de abril de 2022

CADERNOS DA ILHA - 6

 É o silêncio da noite que amplia os sons da noite.

A música, oiço-a ao longe, translúcida e leve e há, tenho a certeza, um violino que chora sons hesitantes, unidos numa espécie de lamúria.
De quando em quando, interrompe-se num silêncio breve talvez seja a negrura da noite que lhe magoa a melodia, lhe fere a fúria, desconcerta a consonância. Talvez seja a lua quase nova, num estertor minguante que não abre caminhos de prata nas águas da baía ou estrelas vagabundas escondidas nas nuvens que não sustentem o sonho, seja por um instante.
Por tudo isto ou por outra razão qualquer amanhã, quando nascer uma nova claridade talvez o violino se alegre, se ainda lá estiver!
E me rasgue esta saudade...

CADERNOS DA ILHA - 5

 A vida não é sobre o que temos mas sobre o que somos!

Porque a vida ensina a perdoar, parece que já perdoaste.
Porque o tempo ajuda a esquecer, parece que já esqueceste.
E, dizes para contigo: "Já passou..."
Ainda bem que já passou. E, por bondade, compaixão ou seja lá o que for, embrulhas num jornal amarrotado, uma data sem data e na mais recôndita gaveta da mente assim fica. Dormente!
Mas, um dia acordas de repente e pisas um pequeno caco, um pequeno pedaço de vidro, um destroço, uma coisa de nada que ficou esquecida no chão da realidade e tudo regressa. E tudo volta a doer.
("... aliás, o tempo não cura nada. Apenas tira o incurável do centro das atenções..." Fernando Pessoa.)

CADERNOS DA ILHA - 4

 Quando aceitamos o fim de um ciclo é porque estamos preparados para um novo ciclo.

A tempestade adormeceu com o vento e o mar recuou para a linha das rochas que agora aparecem, uma após outra, enormes bossas no meio do areal ensopado em espuma. Ele agarra-lhe ambas as mãos e segura-as encostadas ao rosto. Os olhos dela têm reflexos de mar e lágrimas salgadas a escorrer pela face,
Ela está deitada no meio de uma luz amarelada dos últimos raios de Sol que entram pela esquadria da janela de vidro partido. Ele vai devagar, em direcção à porta à espera de ouvir a voz dela pedir-lhe que fique.
Mas o silêncio acompanha-o. Hesita uma, duas vezes. mas é o silêncio.
Se ele for embora, irá! Ninguém o impedirá. Nem ela. Ela ama-o mas merece alguém que queira ficar junto dela...

CADERNOS DA ILHA - 3

 Algumas vezes não existe próxima vez porque algumas vezes é a vez do agora ou nunca!

A sua vida tinha sido uma história de procura.
Viveu, durante muito tempo, a vida do mundo e dos prazeres mas sem lhes pertencer. os anos de juventude passaram demasiado depressa imersos numa prosperidade que só os sentidos satisfazia, mas não ao coração.
Olhou para o rio, lá em baixo na base da escarpa onde se despenhava a queda de água e, nunca aquela água lhe pareceu tão clara, tão límpida, tão capaz de lhe lavar até a alma e libertá-la daquele corpo do qual só mantinha recordações funestas, sem qualquer ânimo. Parecia que o rio tinha algo especial para lhe dizer, coisa que ela ainda não sabia mas que esperava por ela. Tantas vezes ali estivera e nunca, como agora, tivera aquela sensação de um arrepio suave e quente.
Olhou ainda uma vez mais em volta e foi então que saltou do penedo...

CADERNOS DA ILHA - 2

 

A noite passada naquele preciso instante antes de adormecer, levei-te comigo no sonho que ia ter. E sonhei, sonhei e sonhei.
Esta manhã naquele preciso instante antes de acordar, despedi-me de ti ainda a sonhar. E amei, amei e amei.
Telefonava-lhe a meio da noite sem se importar com a hora, só porque precisava de falar. Ela acordava num sobressalto e então ele dizia: "Sou ... eu". Ela, do outro lado, num murmúrio que mais parecia uma súplica:

"Diz lá... ". Umas vezes ele falava um monte de coisas, outras lia mais um capítulo, páginas ao acaso, frases que acabara de escrever. Ela ficava a ouvir, num silêncio dormente e, de repente, desligava sem se despedir.
Foram meses de noites sim, noite não. Nunca falavam durante o dia. Ele dormia toda a tarde. Só gostava de escrever à noite. Depois, quando ele acabou o livro mandou-lhe um maço de folhas A4 num dossier de capa amarelo estafado pelo tempo e pela humidade, sem título.
Deixou de lhe telefonar. Tinha tudo escrito. Já não precisava de falar.
Ela arranjou um novo namorado.

CADERNOS DA ILHA - 1

 Entre um céu imaginado de estrelas

e um chão à espera de um Sol que não vem
há toda uma noite por fazer.
O vento corre, apertado e liso, entre casas suspensas em telhados altos que parece desabarem na viela. A roupa estendida pelas varandas nas cordas dos varais como bandeiras abraçadas, num ruído de velas ao vento.
As escadinhas de corrimão ao meio têm os degraus gastos pelo tempo e pelos passos perdidos no vai e vem da vida. No pequeno largo de chafariz de fora, a velha figueira continua a sombrear o velho banco de tábuas que já foram pintadas de verde mas que o tempo deixou uma cor indefinida.
A porta de postigo verde e o degrau onde te sentavas nos fins de tarde, à minha espera. Mal eu punha o pé no último degrau, corrias ao meu encontro com um sorriso que se confundia com os malmequeres do vestido e na vertigem de uma volta, rodopiávamos abraçados, assim como nos finais daqueles filmes onde haja um largo e um par de amantes apaixonados.
Já passaram tantos anos...
O vento continua a correr mas já não estás para me abraçar e, eu só te consigo ver se cerrar os olhos.

DIA MUNDIAL DO LIVRO


Os livros são um importante veículo de cultura e informação, e ainda, elementos fundamentais no processo educativo. A data de 23 de Abril foi escolhida pela UNESCO em 1995 para celebrar o livro pois foi neste dia de 1616 que faleceu Miguel de Cervantes.

Também a 23 de Abril, em 1899, nasceu Vladimir Nabokov romancista, poeta, tradutor e entomologista russo cujas obras ganharam projecção internacional após a sua naturalização americana e começar a editar em inglês.
O dia 23 de Abril é recordado como o dia em que nasceu e morreu o iminente dramaturgo William Shakespeare.
Tem como objectivo reconhecer a importância e a utilidade dos livros, assim como incentivar hábitos de leitura.
No Dia Mundial do Livro decorrem várias ações de promoção do livro e da leitura, organizados por livrarias, feiras, associações culturais, escolas, universidades e outras entidades.
Uma sugestão de celebração é partilhar a(s) sua(s) obra(s) preferida(s) com os outros. Outra sugestão é começar a ler um novo livro.
Hoje decidi celebrar este dia do livro, promovendo os meus próprios por isso não estranhem se o textos forem (hoje) retirados dos meus livros e dos meus cadernos de apontamentos... com toda a humildade, tenham paciência!

quinta-feira, 14 de abril de 2022

Sob o estímulo da erupção de Cumbre Vieja, na ilha canária de La Palma fomos por algumas das devastadoras erupções vulcânicas que, por não terem tido o mediatismo desta, por um lado e por outro, já se terem apagado da memória dos tempos, apenas conseguem despertar um sentimento mais longínquo de apreensão.

E, de repente, no arquipélago dos Açores, a ilha abana e abana e abana!
Segundo a mitologia greco-romana, sempre que Apolo, deus da Beleza, da Perfeição, da Harmonia, do Equilíbrio e da Razão, iniciador de jovens no mundo dos adultos, ligado à Natureza, às ervas e aos rebanhos, e era protetor dos pastores, marinheiros e arqueiros visitava Vulcano, o deus do fogo e da metalurgia, fazia mister para que alguma calamidade que estivesse a acontecer, com fogo, parasse imediatamente!
Não faço ideia, quando Diego Velásquez se inspirou e pintou o quadro que reproduzo na foto "Visita de Apolo à Forja de Vulcano" se estaria a viver-se alguma catástrofe natural mas, vulcões em actividade e sismos foi coisa que sempre houve e com abundância por cá, nuns sítios mais que noutros.
Para a História fica o relato impressionante de Simon Ken Winchester, escritor e jornalista britânico, em " O Dia em que o Mundo Explodiu" que se refere à explosão dos vulcões na ilha de Krakatoa, a este das ilhas de Java, em Agosto de 1883. A ilha desapareceu quando o vulcão homônimo, no monte Perboewatan (supostamente extinto) entrou em erupção. Esta é considerada a erupção vulcânica mais fatal da história, a sexta maior erupção do mundo, além de o som mais alto já ouvido na História (o barulho do estrondo pôde ser ouvido a 5 mil quilômetros de distância). A caldeira de magma do vulcão era monstruosa, possuía quase 16 km de diâmetro e não parou de cuspir lava e houve ainda outras erupções durante todo o ano. Antes da erupção, a ilha possuía 882 metros de altitude, mas após, a ilha foi riscada do mapa, tendo-se formado um lago na cratera do vulcão, onde hoje vivem várias espécies de plantas e pássaros.
Actualmente, na região da cratera, há uma nova formação rochosa em andamento chamada Anak Krakatau (Anak Krakatoa, filho de Krakatoa ou Krakatau), que já possui mais de 324 metros de altura, sendo que a cada ano aumenta cinco metros, aproximadamente.
Para se ter uma outra noção do facto e do impacto causado, registe-se que enquanto as bombas lançadas sobre Hiroshima e Nagasáqui eram de potência de 20 megatoneladas, a explosão de Krakatoa era potência de 200 megatoneladas.
A Natureza quando estoira a sério...

segunda-feira, 11 de abril de 2022

ATÉ SEMPRE NUNO. LEVA UM ABRAÇO MEU...

 

Hoje o dia está mais do que cinzento! Está triste e esta chuva vertical que parece não abrandar nunca. Dois dias seguidos nisto. Vá lá, vá lá! Já têm sido mais... resta a promessa (de quem?) que o fim de semana de Páscoa terá Sol e mais calor. Aguardemos!
Mas, hoje, também é o dia de nos despedirmos do Nuno. O meu primo por afinidade que morava aqui na Quinta na casa que ficou dos pais, um pouco mais acima da nossa Ilha. Tinha 64 anos!
Começámos mais ou menos ao mesmo tempo, há uns oito meses, com as dores nas costas. As dele eram cervicais. As minhas são na região dorsal e lombar. Exames para aqui. Exames para ali.
Chegou o diagnóstico ainda antes do meu.
Cancro no pulmão. metastisado pela medula, na cabeça...
O Nuno não era dos primos mais conversadores nem o que eu conhecesse melhor. Muito fechado com a sua vida e as suas coisas. Lembro-me quando estava casado que dedilhava viola e, contava umas anedotas. Depois a vida levou-nos por caminhos diferentes. Víamo-nos menos. Quase nada. Vivia quase solitariamente.
Mas, desde que viemos, a Dalita e eu para aqui, para a Ilha, começou a aparecer mais. Gostava de falar com a Dalita sobre as "artes agrícolas"! Comigo, falávamos sobre tudo. Até sobre a agricultura, recordando os anos de adolescentes em que o meu tio, engenheiro agrónomo, estava por cá com a "Experiência Agrícola" e como primeiro comandante dos bombeiros. falava-me dele com entusiasmo. Homem de iniciativas. E, muito conhecedor.
O Nuno assombrava-me com a memória dele. Sabia as marcas e as matrículas dos carros. De uma data de carros da família. Até dos carros que o meu pai tinha e que eu trazia quando vinha cá com a família. Nem eu sei tanto dos meus carros como ele. Mas, não gostava de ler, por isso dizia que gostava de falar comigo pois eu dizia as coisas de uma maneira que ele até pensava "gostaria de ler o que dizes". Ofereci-lhe o livro das minhas crónicas. Acho que chegou a ler umas quantas.
Sentávamo-nos ao Sol do fim das tardes, debaixo do telheiro, e ali ficávamos, às vezes só os dois, outras com o Alexandre (um outro primo que anda sempre por aqui nas "agriculturas artesanais" e mais um ou outro familiar ou conhecido que aparecia uns momentos a desejar "boas tardes". O nosso passado adolescente ocupava-nos muito tempo. Acho que é próprio de quem anda pelos setenta e tais e
para ele, mais novo ainda uns dez anos, conversas que estimulavam uma vivência de tempos mais alegres e despreocupados. Outras vezes era sobre outra coisa qualquer. "Vamos lá desfolhar o tempo..." dizia eu e ele ria-se. "Lá estás tu a inventar palavras!"
Depois chegaram os diagnósticos. Primeiro o dele. Depois o meu! Ele já em tratamentos. Eu ainda pelos exames e pelo hospital. Telefonava ele para saber como eu estava; telefonava eu para saber como se estava ele a safar. Os tratamentos prosseguiam. Radioterapia. Ia agora começar com imunoterapia. Estava esperançoso. "Só estas pernas sem força nenhuma...." Como eu o percebo! É isso que também me atrapalha tanto. "O resto! Eu não quero é ter dores. Eu cá com dores não presto para nada!" Nem eu, meu caro Nuno. nem eu!
Depois fartava-se de me fazer perguntas. Coisas que eu não sabia como responder-lhe: "Eh, pá! Eu só sei o que os médicos me dizem: sobre o que eu tenho... de resto..." mas ele insistia. "AH, tu sabes! És um gajo informado! Tu sabes bastante desta malvada doença" Eu sorria. Não por imodéstia mas para disfarçar a minha ignorância sobre o problema que me punha. Ele, claro não via o meu sorriso. Talvez o pressentisse. "Vou perguntar, vou ver se leio.... desculpava-me, para adiar a resposta que não tinha".
Uma tarde de sexta feira, há duas semanas atrás, veio de Coimbra mas durante a noite teve uma urgência hospitalar. Falta de ar... mesmo muita dificuldade em respirar. Não queria ir para o hospital. Não era preciso. Mas lá se convenceu. A crise estava séria! Diagnóstico fatal: apanhou Covid-19! Debilitado. defesas em baixo e sem vacina tomada. Quando devia ter tomado, teve medo na altura, por causa do coração. Entrou na quarta feira passada., em coma. Morreu, ontem de manhã no hospital de Salreu. Hoje vamos despedir-nos!
Até sempre Nuno, leva um abraço!

segunda-feira, 4 de abril de 2022

LIBERDADE

 



— Liberdade, que estais no céu...
Rezava o padre-nosso que sabia,
A pedir-te, humildemente,
O pio de cada dia.
Mas a tua bondade omnipotente
Nem me ouvia.
— Liberdade, que estais na terra...
E a minha voz crescia
De emoção.
Mas um silêncio triste sepultava
A fé que ressumava
Da oração.
Até que um dia, corajosamente,
Olhei noutro sentido, e pude, deslumbrado,
Saborear, enfim,
O pão da minha fome.
— Liberdade, que estais em mim,
Santificado seja o vosso nome.
(Miguel Torga, in 'Diário XII')

"Foram dias foram anos
a esperar por um só dia.
Alegrias.
Desenganos.
Foi o tempo que doía
Com seus riscos e seus danos.
Foi a noite e foi o dia
Na esperança de um só dia.

("Manuel Alegre, Hastear da bandeira")

sábado, 2 de abril de 2022

ABRIL, MÊS DA LIBERDADE 1

 Entrámos em Abril, o mês da "Liberdade" pois cumpre-se a data histórica em que foi deposta a mais longa ditadura da Europa e uma nação pôde, enfim, respirar democracia.

Um poema sobre liberdade, a cada dia, eis o que me proponho aqui deixar "ao cair do pano"
Hoje, dia um, o primeiro.
LIBERDADE
Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
O sol doira
Sem literatura.
O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como tem tempo não tem pressa...
Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.
Quanto é melhor, quando há bruma,
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!
Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.
O mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca...
(Fernando Pessoa)
Tenhamos uma excelente noite.
Pode ser um desenho animado
Belinha Viseu Pinheiro, Zeza Alfaiate e 7 outras pessoas