segunda-feira, 30 de novembro de 2020

SOBRE ALÍNGUA PORTUGUESA I


Sabiam que é possível ler poemas de Fernando Pessoa em mirandês?

Do seu livro "Mensagie", publicado em 2010.
L ANFANTE
Dius quer, l home sonha, la obra nace.
Dius quijo que la tierra fuera toda ua
Que l mar ounira, yá num apartasse
Sagrou-te, i fuste çcubrindo la scuma.
I la bonda blanca fui d ilha an cuntinente
Anclareou, fugindo, até la fin de l mundo
I briu-se la tierra anteira, derrepente,
Abrolhar, redonda, de l azul perfundo.
Quien te sagrou criou-te pertuês
Cumpliu-se l mar, i l Ampério se çfizo
Senhor, falta cumplir-se Portual!
O tradutor da obra chama-se Fracisco Niebro (pseudónimo de Amadeu Ferreira) falecido em 2015, era professor de português, tradutor, revisor e um dos grandes defensores do mirandês e, segundo Marco Neves o autor do livro "12 Segredos da Língua Portuguesa", deve tê-lo feito por puro prazer já que a "Mensagem" todos os falantes de mirandês podem lê-lo no original, em português.
Mas há outras revelações neste livro e que para além das curiosidades, sobre a língua portuguesa, me tem divertido imenso. Como exemplo a grande suposição de que "o galego é bem capaz de ser o pai da língua portuguesa"; como traduzir a palavra "saudade"; "os erros que não são erros" ou "que os palavrões fazem bem à saúde, mas convém não abusar".
Voltarei aos temas mais divertidos.
E, por agora, em mirandês me despeço:
Ber-se un eicelente dia!

terça-feira, 17 de novembro de 2020

TEMPTABIS LAPIDEM PRIMUS


Foi a 17 de Novembro de 1717 que EL REY DOM JOANNES V procedeu ao "temptabis lapidem primus" (lançamento da primeira pedra), promessa feita pela descendência que viesse a ter com a rainha D. Maria Ana de Áustria do PALÁCIO NACIONAL DE MAFRA

Composto por um palácio e mosteiro monumental estilo barroco alemão de autoria do arquitecto mor do reino, João Frederico Ludovice, ocupa uma área aproximada de quatro hectares (37 790 m²). Construído em pedra lioz abundante na região é constituído por 1 200 divisões, 4 700 portas e janelas, 156 escadarias e 29 pátios e saguões. Demorou 36 anos a ser edificado.
Destinado à Ordem de São Francisco foi pensado numa fase inicial para 13 frades, foi sucessivamente alargado para 40, 80 e finalmente uma comunidade de 300 religiosos e tendo lhe sido acrescentado o palácio real.

Entre Junho e Dezembro de 1970 "habitei" no Convento não monge franciscano mas soldado cadete da Escola Prática de Infantaria. Não gostei muito!

Monumento Nacional declarado em 2019 Património Mundial da Humanidade pela UNESCO.
É tema da obra Memorial do Convento, de José Saramago.


Fiquem com uma pequeníssima visita à nave da Basílica

SALA DOS DESTINOS - No tecto, da autoria de Cirilo Volkmar Machado, está representado o "Templo do Destino", destacando-se a figura da Providência que entrega a D. Afonso Henriques o Livro dos Destinos da Pátria. 

SALA DO TRONO - Destinada às audiências régias. A pintura do tecto representa uma alegoria à "Lusitânia" e faz parte da campanha decorativa que Cirilo Volkmar Machado executou no Palácio a partir de 1796 por encomenda do Príncipe Regente, futuro rei D. João VI. Paredes decoradas com pinturas a fresco representando as oito Virtudes Reais, da autoria de Domingos Sequeira (1768-1837).

SALA AMARELA - Também conhecida por Sala da Música ou Sala de Recepção. A Família Real recebia aqui os seus convidados, substituindo a Sala de Audiências (do Torreão Norte) depois de D. Pedro V abolir o tradicional beija-mão real nas datas festivas. 

BIBLIOTECA - O maior tesouro de Mafra é a sua biblioteca, com chão em mármore, estantes em estilo rococó e uma coleção de mais de 40.000 livros com encadernações em couro gravadas a ouro, incluindo uma segunda edição de Os Lusíadas de Luís de Camões.Situada ao fundo do segundo piso é a estrela do palácio, rivalizando em grandiosidade com a Biblioteca da Abadia de Melk, na Áustria. Construida por Manuel Caetano de Sousa, tem 88 m de comprimento, 9.5 de largura e 13 de altura. O magnífico pavimento é revestido de mármore rosa, cinzento e branco. As estantes de madeira estilo rococó, situadas em duas filas laterais, separadas por um varandim contêm milhares de volumes encadernados em couro, testemunhando a extensão do conhecimento ocidental dos séculos XIV ao XIX. 

www.palaciomafra.gov.pt/pt-PT/biblioteca/ContentList.aspx

quarta-feira, 11 de novembro de 2020

O (MEU) SOLDADO (DES)CONHECIDO

 

A PRIMEIRA GRANDE GUERRA tinha acabado com11.000.000 de mortos.
Nunca foi possível dizer quantos feridos e desaparecidos.


No funeral do tio Amílcar apareceram cinco homens, ar solene, nas cabeças bivaques cinzentos com o número quatro em metal amarelo e duas espingardas cruzadas por baixo. Cumprimentaram a tia Eulália e foram perfilar-se em volta do caixão num recolhido silêncio.
Tinham estado com o tio na guerra. Reconheci um deles, por o ter visto lá em casa algumas vezes. Ele sorriu para mim.

A noite estava serena quando o cabo Amílcar saiu da trincheira, em missão de observação, com mais dois camaradas. Meia dúzia de quilómetros à frente, havia uma aldeia em poder dos alemães. Os três foram rastejando na lama acumulada pelo inverno flamengo, de buraco em buraco de obus, passaram silenciosamente as barreiras de arame farpado, evitaram as minas e já estavam perto da estrada que levava à tal aldeia quando tiveram de abrigar-se numa vala.
Uma chuva de ‘very lights’ fez da noite um clarão. Ouvia-se por perto vozes em tom alto e sons guturais que pareciam ordens. Na vala estava uma jovem com uma criança de colo. O cabo Amílcar e os dois camaradas quase lhes caíram em cima. Na aflição mútua, a mulher soltou um grito sufocado mas que o silêncio da noite ampliou. Uma coluna de alemães seguia a pé, pela estrada que ia dar à aldeia, a uns sessenta ou setenta metros. Houve um momento de hesitação mas depois, um grupo que vinha mais à frente começou a metralhar o local. Duas granadas de gás mostarda caíram na vala.
Desataram a correr. O tio Amílcar pegou na criança e, de imediato, colocou-lhe a sua máscara. Enquanto se serviam das máscaras para proteger a criança e a jovem atingida por um estilhaço numa perna era arrastada pelos dois companheiros gemendo de dor. Deve ter sido a hora mais longa da vida deles. Tinham salvo criança e jovem mãe mas ao tio Amílcar, o gás secara-lhe os pulmões e descompassara-lhe o coração. Para sempre.

A tia Eulália teve um enfarte, no Natal do ano passado. Ficou paralisada numa cadeira de rodas.
Os primos depositaram-na num lar em Alcabideche e lá ficou até ao dia da sua morte que foi hoje. Fui lá visitá-la várias vezes e levava-lhe os fidalgos, uns bolinhos de manteiga com uma cereja cristalizada fabricados na "Mimosa da Graça" de que a tia gostava de paixão.
Mas, nunca mais quis ver a casa. A Vivenda Maria Eulália foi morrendo como ela ia morrendo aos poucos naquele lar. Foram oito anos.
Meio destelhada, as janelas esventradas, vidros estilhaçados, azulejos verdes e brancos já incapazes de formarem o xadrez original, abrem feridas que sangram no negrume da fachada. A escadaria de degraus gastos, os anjos de pedra sem cabeça um e sem uma asa, o outro continuam teimosamente ajoelhados no bordo do pequeno lago seco que as silvas invadiram devoraram e treparam aos muretes do jardim até cobrirem a entrada da garagem,
Quando aqui vinha, com os meus pais, os anjos do lago eram perfeitos, seguravam tochas com flores e havia um jardim com tabuleiros de margaridas, miosótis, lilases, sálvias e troviscos, sinfonia de perfumes e de cores a que a tia Eulália dedicava a alma e o tempo.
O tio Amílcar assim que me via, alongava o braço, agitava a mão, a voz fraca, "anda cá, meu menino" e eu sentado ao seu lado, no cadeirão do quarto, a ouvir aventuras que não eram as dele mas que ele me contava como se fossem. Mas se lhe pedia que me contasse uma aventura da guerra dele, franzia-me o sobrolho "ora, não tem graça nenhuma…" e lá vinha um ataque de tosse.
Uma tarde muito quente de verão, um grito de angústia da tia que o foi encontrar sentado no cadeirão do escritório, braços abandonados quase a roçarem a carpete e os olhos esbugalhados e boca muito aberta num desesperado esforço para engolir ar.

No portão alto, em ferro pintado de verde gasto pelo tempo, fechado a cadeado, a placa ‘VENDE-SE, parece eternizar-se. Sinto um nó na garganta, "anda cá meu menino" parece que o oiço mais a tosse; o tio Amílcar que combatera na primeira guerra mundial e herói com medalha e tudo, não por ter matado gente mas por ter salvo uma jovem e o seu pequeno filho regressara da França com aquela tosse que o deixava em aflições lívidas, os dedos a repuxarem o casaco de pijama e a cara de enforcado que a doença ia deixando sem ar.