quarta-feira, 11 de novembro de 2020

O (MEU) SOLDADO (DES)CONHECIDO

 

A PRIMEIRA GRANDE GUERRA tinha acabado com11.000.000 de mortos.
Nunca foi possível dizer quantos feridos e desaparecidos.


No funeral do tio Amílcar apareceram cinco homens, ar solene, nas cabeças bivaques cinzentos com o número quatro em metal amarelo e duas espingardas cruzadas por baixo. Cumprimentaram a tia Eulália e foram perfilar-se em volta do caixão num recolhido silêncio.
Tinham estado com o tio na guerra. Reconheci um deles, por o ter visto lá em casa algumas vezes. Ele sorriu para mim.

A noite estava serena quando o cabo Amílcar saiu da trincheira, em missão de observação, com mais dois camaradas. Meia dúzia de quilómetros à frente, havia uma aldeia em poder dos alemães. Os três foram rastejando na lama acumulada pelo inverno flamengo, de buraco em buraco de obus, passaram silenciosamente as barreiras de arame farpado, evitaram as minas e já estavam perto da estrada que levava à tal aldeia quando tiveram de abrigar-se numa vala.
Uma chuva de ‘very lights’ fez da noite um clarão. Ouvia-se por perto vozes em tom alto e sons guturais que pareciam ordens. Na vala estava uma jovem com uma criança de colo. O cabo Amílcar e os dois camaradas quase lhes caíram em cima. Na aflição mútua, a mulher soltou um grito sufocado mas que o silêncio da noite ampliou. Uma coluna de alemães seguia a pé, pela estrada que ia dar à aldeia, a uns sessenta ou setenta metros. Houve um momento de hesitação mas depois, um grupo que vinha mais à frente começou a metralhar o local. Duas granadas de gás mostarda caíram na vala.
Desataram a correr. O tio Amílcar pegou na criança e, de imediato, colocou-lhe a sua máscara. Enquanto se serviam das máscaras para proteger a criança e a jovem atingida por um estilhaço numa perna era arrastada pelos dois companheiros gemendo de dor. Deve ter sido a hora mais longa da vida deles. Tinham salvo criança e jovem mãe mas ao tio Amílcar, o gás secara-lhe os pulmões e descompassara-lhe o coração. Para sempre.

A tia Eulália teve um enfarte, no Natal do ano passado. Ficou paralisada numa cadeira de rodas.
Os primos depositaram-na num lar em Alcabideche e lá ficou até ao dia da sua morte que foi hoje. Fui lá visitá-la várias vezes e levava-lhe os fidalgos, uns bolinhos de manteiga com uma cereja cristalizada fabricados na "Mimosa da Graça" de que a tia gostava de paixão.
Mas, nunca mais quis ver a casa. A Vivenda Maria Eulália foi morrendo como ela ia morrendo aos poucos naquele lar. Foram oito anos.
Meio destelhada, as janelas esventradas, vidros estilhaçados, azulejos verdes e brancos já incapazes de formarem o xadrez original, abrem feridas que sangram no negrume da fachada. A escadaria de degraus gastos, os anjos de pedra sem cabeça um e sem uma asa, o outro continuam teimosamente ajoelhados no bordo do pequeno lago seco que as silvas invadiram devoraram e treparam aos muretes do jardim até cobrirem a entrada da garagem,
Quando aqui vinha, com os meus pais, os anjos do lago eram perfeitos, seguravam tochas com flores e havia um jardim com tabuleiros de margaridas, miosótis, lilases, sálvias e troviscos, sinfonia de perfumes e de cores a que a tia Eulália dedicava a alma e o tempo.
O tio Amílcar assim que me via, alongava o braço, agitava a mão, a voz fraca, "anda cá, meu menino" e eu sentado ao seu lado, no cadeirão do quarto, a ouvir aventuras que não eram as dele mas que ele me contava como se fossem. Mas se lhe pedia que me contasse uma aventura da guerra dele, franzia-me o sobrolho "ora, não tem graça nenhuma…" e lá vinha um ataque de tosse.
Uma tarde muito quente de verão, um grito de angústia da tia que o foi encontrar sentado no cadeirão do escritório, braços abandonados quase a roçarem a carpete e os olhos esbugalhados e boca muito aberta num desesperado esforço para engolir ar.

No portão alto, em ferro pintado de verde gasto pelo tempo, fechado a cadeado, a placa ‘VENDE-SE, parece eternizar-se. Sinto um nó na garganta, "anda cá meu menino" parece que o oiço mais a tosse; o tio Amílcar que combatera na primeira guerra mundial e herói com medalha e tudo, não por ter matado gente mas por ter salvo uma jovem e o seu pequeno filho regressara da França com aquela tosse que o deixava em aflições lívidas, os dedos a repuxarem o casaco de pijama e a cara de enforcado que a doença ia deixando sem ar.