quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Espécie de carta aberta de alguém que não fica muito bem visto.

 

Caros Terráqueos,
Sei que estão fartos de mim e desejosos que eu faleça.
Pois muito bem! Já falta pouco e estou já a antecipar a vossa incontida alegria nas doze badaladas de amanhã, vê-los saltar para cima de uma cadeira ou de um sofá, flute a borbulhar na mão, a notita amarfanhada na outra, e as doze passas ritmadamente engolidas um grande chinfrim com pedidos ao novo que nasce e um adeus muito aliviado a mim que me fino. Mas, afinal não é sempre assim?
Conhecem alguém que se despeça de um ano com pena?
É capaz de haver alguns, mas muito poucos, porque vocês terráqueos, além de mal agradecidos, sois ambiciosos e hipócritas. E, sempre uns esperançoso do caraças.
Por muito bom que eu pudesse ter sido, quando chegasse a meia noite de amanhã, vocês terráqueos saltariam à mesma de contentamento e a passagem de testemunho sempre teria a carga de alívio como se não tivesse prestado para nada?
Embora tivesse começado no meu antecessor, já sei que vou ser eu que vou ficar, nas vossas pobres cabeças, como o vilão por ter interrompido as vossas egoístas e rotineiras vidinhas, apenas mês e meio após o meu início. Paciência! Também não estou aqui para lhes pedir desculpa.
E, depois, não andaram logo tantos a dizer, "Estamos todos no mesmo barco"; "Vamos todos ficar bem" e outras palermices no género, não sei se irritantes optimistas, inocentes ingénuos ou simplesmente parvos e que agora devem estar entre os que mais saltam de satisfação com a minha morte?!
A vida é mesmo assim; tratem de descobrir as coisas boas.
A vacina já a têm e lembrem-se que ainda foi no meu tempo.
Muitos de vós até exultaram com o teletrabalho e poderem desempenhar funções no vosso acolhedor pijama e com o "escritório" a dois ou três metros do vosso quarto, sem terem de suportar o olhar do chefe por cima do ombro nem aquela rotina estúpida do cigarrinho lá fora. à porta da empresa ou a mijinha mais demorada no WC apenas porque já estavam fartos do dia.
Não me vou por aqui a enunciar todas as novidades mas foi giro vê-los com as bocas tapadas - para muitos foi profilático - e a acotovelarem-se constantemente - nunca percebi porquê se depois inventaram a tal etiqueta respiratória de tossir e espirrar para a zona perto do cotovelo - mas também foi muito interessante o cuidado com a higiene das mãos e foi um excelente negócio para determinadas empresas.
E, então para as compras online e as entregas porta-a-porta? Nem falo!
Agora não se esqueçam de se por aos abraços e aos beijinhos quando eu falecer e nascer o outro! Depois queixem-se de que se contagiaram e o culpado é o dois mil e vinte e um.
Bem, para não pensarem que me vou sem festa, arranjei-lhes para o fim mais uma depressãozita. A Bella! Beleza de frio e chuva. que começará em força só após a minha morte... ao menos alguém que a chore! Ah! E, mantenham-se espertos porque lhes deixo mutações do bicho, para se recordarem de mim por um pouco mais tempo.
Gostei de ter estado convosco e sejam felizes,
Despeço-me com uma cotovelada.

Dois Mil e Vinte