quarta-feira, 29 de abril de 2020

ESPELHO MEU, ESPELHO MEU

Esta coisa do confinamento parece que nos provoca estragos na memória e deixa-nos menos atentos a certas rotinas.

Já ouviram falar disso?

Estou a acabar de lavar as mãos no lavatório do quarto de banho quando o espelho se agita à minha frente e um gajo com ar idoso sorri-me trocista.
Espremo as mãos debaixo da torneira como aquela senhora que é directora geral da saúde recomenda, a fingir ignorá-lo.
Mas ele:

(É contigo, pá! Já reparaste que tens 71?)
decido-me por encolher os ombros enquanto pronuncio com o ar mais despreocupado que consigo:
"Então e depois?"
(Então e depois!? Ena pá são 71, percebes? Não são 10 nem 20, nem sequer 30 ou 40! São 71, meu... uma vida, uma data deles, uma porrada de tempo...)
não entendo mas assim como assim, vou demorar a limpar as mãos à toalha para ver se lhe apanho o raciocínio.
"Pronto! 71 e depois? O que tem isso? É a esperança de vida que aumenta. Até já não é nada de especial. Eu nem me sinto assim tão, tão .. .tento manter o espírito percebes?"
Oiço uma gargalhada trocista.
(Manter o espírito! Deixa dar-te então um conselho. Se fosse a ti verificava, antes de te ires embora, se acertaste na sanita e depois faz favor a ti mesmo, baixa a tampa... eu bem a oiço se vê um ou dois pingos no chão e sanita de boca aberta...vê se percebes! Põe-te esperto!)
Escondo a vontade de lhe responder. Não pelo conselho mas pela reprimenda e sobretudo pelo sarcasmo.
Verifico? Verifiquei! Antes de sair e apagar a luz, olho de lado o espelho. Lá estava ele a olhar-me de lado. Atirei-lhe:
"OK! Distraí-me, esqueci-me, sei l Já tenho quase 71 ...porra!" Fiquei com a gargalhada trocista dentro do cérebro.
Apago rapidamente a luz para ele desaparecer de vez e volto para a sala onde a Dalita embrulhada na manta de quadrados ja ocupa o sofá fazendo um ruído ligeiro a meio da telenovela. Afivelo um imperceptível sorriso.
"Desta vez escapo... felizmente há espelhos atentos..."