segunda-feira, 11 de maio de 2020

PENSAMENTOS SEM MÁSCARA

O meu smartphone ilumina-se para me anunciar um alerta de mau tempo em Sever do Vouga. Novidade? Nenhuma.
De madrugada a chuva foi grossa. No meu quarto a clarabóia transmite essa sensação de água a bater com mais força na janela deitada. Às vezes gosto de a ouvir; outras não.
Agora gostaria mais de que o Sol fosse senhor e dono deste tecto vestido de cinzento e pintasse a clarabóia de amarelo.
Vamos ter isto, toda a semana. Um desafio entre um Inverno serôdio e um Verão antecipado, coisa de natureza bipolar que entretanto perdeu a Primavera.
Bipolar é, também e cada vez mais, esta rede social. Começa a ser raro encontrar-se meio termo. Sinal dos tempos?
Ou será porque andamos tendencialmente à procura do que é excessivamente trágico para podermos extravasar as nossas próprias frustrações e violências?
Ontem, a notícia foi a aparecimento da menina. Morta!
Cruelmente assassinada pelo pai com a cumplicidade da madrasta. Pelo menos foi o que este terá confessado.
Mas é tão fácil desejar a morte dos outros? Pedir? Exigir?
Não sou crente, mas abstenho-me dessa vontade de exigir a morte e que muitos que se dizem crentes numa justiça divina, com céu, com inferno e até com purgatório, vida para além da morte, leis do retorno e em outros "guias de consciência", de pedir mais do que aquilo que a justiça dos homens prevê
Será que é isso que limpa consciências?
Será para chamar a atenção de um deus, seja ele qual for, que emende o erro por ter permitido tal desaforo?
Será que não se percebeu que o cérebro pode ser o nosso pior inimigo?
De alguns anos a esta parte, por curiosidade, por pertencer a uma geração que dava pouca relevância às doenças do nosso principal órgão mas também por motivos que foram profissionais que leio e releio alguns dos que dedicaram as suas vidas ao estudo da "cabeça das pessoas" e interpretar comportamentos. E, sinto-me fascinado e ao mesmo tempo, cada vez mais inseguro quando se trata de julgar.
Vivemos, cada vez mais, um mundo pejado de discussões acesas, de violências e ódios, de atitudes excessivas e de depressões profundas e que nos confronta, a cada passo, com uma realidade que desafia o formato dominante e a tolerância de que somos capazes, e temos reacções adversas sem nos apercebermos que são as nossas cabeças que nos tornam igualmente violentos e com mais violência em cima do que já é intolerável estamos convencidos que resolvemos o problema, tipo "mata-se o bicho; acaba-se a peçonha!"
Não acaba!
Sem pretender, de maneira alguma atenuar, repito, tamanha monstruosidade do acto ou de qualquer que envolva morte de uns às mãos de outro, excepto em legítima defesa) se o que desejamos é a sociedade do conhecimento que quer o seu lado mais humano então deve prosseguir no esforço de se equipar com todos meios que possam prevenir e tentar evitar repetição de actos tão chocantes como o que aconteceu em Atouguia da Baleia e que está sempre a acontecer, por esse mundo fora, senão com esta extrema gravidade, impossível de emendar, com sevícias sobre crianças, castigos corporais, violência nas palavras, violações e agressões, abusos sobre adolescentes, violência doméstica que muitas famílias ainda calam, por vergonha e receio, até se chegar ao ponto de não retorno. Como este chegou!
Se vizinhos, instituições de apoio à criança e à família, forças de.segurança, tribunais de menores, etc tivessem conseguido cada um à sua escala, antecipar a tragédia.
E, hoje, provavelmente, indignação talvez mas muito menos estariam aqui de punho erguido a exigir a morte sobre outra morte!
Estude-se o que se pode conhecer e interpretar; previna-se o que se pode antecipar e melhorar em termos de instituições e defesa das vítimas, tratem-se criminosos que sejam passíveis de recuperação, puna-se na medida do que é mensurável.
Desculpem ser tão longo mas às vezes, não usar máscara pode ser perigoso e não quero ficar contagiado.